O PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO E SUAS POSSIBILIDADES

1. Introdução
É relevante pensar como em um país com o histórico do Brasil, de uma recente liberdade, após anos de ditadura, vem-se referendando a necessidade de construir pela educação, uma cultura de direitos que vai de encontro à idéia de fraternidade [1] constante na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Trazer o projeto político-pedagógico, de uma grande rede de ensino, para nossa discussão permite pensarmos qual a natureza da educação que estamos oferecendo e o quanto à escola está contribuindo, ou não, para a efetivação de uma cultura de respeito aos direitos, possibilitando a percepção de até que ponto os pactos assinados pelo Brasil e as diretrizes indicadas pelos planos de governo são efetivadas na prática cotidiana da escola.
Meszáros (1993) é de opinião que perspectivas de “fraternidade”, “liberdade” e “igualdade”, idealmente construídas, são abstratas e de difícil efetivação. Segundo o autor:
Os direitos humanos de “liberdade”, “fraternidade” e “igualdade” são, portanto, problemáticos, em função do contexto em que se originam, enquanto postulados ideais abstratos e irrealizáveis, contrapostos à realidade desconcertante da sociedade de indivíduos egoístas. Ou seja, uma sociedade regida pelas forças desumanas da competição antagônica e do ganho implacável, aliados a concentração de riqueza e poder em um número cada vez menor de mãos. (p. 209).
Considerando que cenário educacional brasileiro existir um forte abismo entre os valores dominantes da sociedade que incluem a aceitação da exclusão e aquele referenciado pela política educacional que coloca a educação como a fonte que proporciona uma igualdade de oportunidades. Ou seja, a educação se resumiria a um privilégio, não um direito de todos, no momento que aceitamos que alguns podem ser excluídos, a universalização da educação como um direito morre, nascendo, neste ponto, a educação como privilégio de que poucos conseguem conquistar.
Desta forma, utilizar as diretrizes do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos-PNEDH, em sua perspectiva de trazer uma nova visão sobre a realidade social, remete-nos a possibilidade de utilizar o projeto político-pedagógico como um dos instrumentos capazes de colaborar para uma efetiva mudança social, transformando o que naturalizamos em nossa sociedade e o que há muitos anos permeia as condições efetivas de nosso ensino.
2. Diretrizes para a construção do projeto político pedagógico da rede de ensino FAETEC
A FAETEC, ao constituir as diretrizes para a construção de um projeto político-pedagógico, pretende que as escolas da rede construam seus projetos em uma única direção, possibilitando uma interlocução entre todas, de forma que para os alunos não haveria diferenças educacionais, pois todas trabalhariam num mesmo sentido. Para isto, ao instituir as diretrizes pretende colaborar na indicação de que cada unidade deva ser “uma escola utilitária, universal, pública e laica, firmada em pressupostos teóricos referenciados na categoria trabalho (entendido como processo de humanização do homem)”. (Diretrizes para a construção do Projeto Político-Pedagógico da rede de ensino FAETEC, 2001, p. 05). Tendo como princípio que a escola é um local onde a reflexão e o debate contínuo a respeito da prática pedagógica deva ser uma atividade constante, sendo ainda, um locus privilegiado para o desenvolvimento da cidadania; de acesso ao saber científico e tecnológico e da formação da consciência democrática.
Um lugar, por excelência, onde se exercite a dúvida e no qual se respeite e se incentive a pluralidade de conceitos e de opiniões dos que nele atuam, para que o conhecimento produzido e as ações empreendidas se realizem com a participação de um coletivo solidário, consciente de seu compromisso social e de seu papel de sujeito criativo e crítico (Idem, p. 06).
Desta forma, a concepção educacional da FAETEC não é neutra, estando relacionada com determinado conceito de sociedade. Estas diretrizes colocam em evidência que os sujeitos envolvidos precisam ter clareza política em relação à necessidade de formar, simultaneamente, pessoas competentes tecnicamente e cidadãos politicamente conscientes e capazes de contribuir para o processo transformação social. Ressaltando que a escola pública é um local privilegiado para o debate e o diálogo coletivo, devendo refletir a realidade para modificá-la. Explicita que, a construção do projeto político-pedagógico é a oportunidade da escola exercitar sua autonomia e experimentar “o novo” tendo pressupostos teóricos assumidos coletivamente a subsidiar a prática pedagógica.
Assim, a gestação de um projeto político-pedagógico exige clareza e adesão com relação à concepção educacional que se defende e compromisso filosófico e ético-profissional de educar cidadãos que desenvolvam autonomia intelectual e crítico, proporcionado ao educando os meios necessários para entender o mundo em que vive e o momento histórico em que está situado (Idem, p. 11).
Avaliando os limites de uma instituição de ensino e seu papel na formação dos cidadãos, percebemos que há na educação uma possibilidade de contraposição ao ensino formador de homens-mercadoria. Neste sentido, o projeto propõe:
Relacionar as contribuições oriundas da reflexão sobre o sistema educacional ao processo de trabalho é fortalecer um ensino apoiado em uma sólida base de conhecimento e que leve em conta a experiência de vida, aptidões e características individuais do estudante, assim como as exigências que lhe serão colocadas no futuro, pela sociedade, no cumprimento de suas obrigações profissionais e sociais (Ibidem, p. 22).
Dentro desta perspectiva, enfatizamos que é somente a partir da apreensão da realidade que, muitas vezes, cultiva a desigualdade, é que se torna possível refletir sobre novas formas e propostas alternativas a este atual modelo de sociedade.
3. A educação como um direito
A educação é reconhecida em nosso país, oficial e formalmente, como um direito de todos e um dever do Estado. Assim, o Estado, tem obrigação de proporcionar a todos os sujeitos sociais, condições de acesso ao conhecimento. O artigo sexto de nossa Constituição Federal explicita que “São direitos sociais à educação, à saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. (Constituição Federal, 1988).
A educação institucionalizada torna-se, desta forma, ponto fundamental para a construção de sujeitos de direito. Indicativo trazido pela Conferência Mundial de Direitos Humanos que ocorreu em Viena no ano de 1993, na qual a educação tem papel fundante na promoção de uma cultura de direitos humanos.
A educação em matéria de Direitos Humanos e a divulgação de uma adequada informação, de caráter teórico ou prático, realizam um papel importante na promoção e no respeito dos Direitos Humanos de todas as pessoas, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião e devem ser integradas nas políticas educativas de âmbito nacional e internacional. (Documento Final, parágrafo 20).
Apesar da construção da agenda de direitos humanos no Brasil ter como base a repressão à violência, sua institucionalização, segundo Almeida, acaba se vinculando a violência de Estado pela qual nossa sociedade passou na última metade do século XX. Para a autora (2001):
A violência está na base da construção da agenda de direitos humanos no Brasil: inicialmente, o terrorismo de Estado, que dizimou quase quatro centenas de vidas, nas décadas de 60 e 70 do século XX(...) nos dias atuais, a violência institucionalizada, que cotidianamente interrompe projetos e trajetórias daqueles que sofrem diretamente as conseqüências mais diretas das políticas de ajuste estrutural, nos marcos da reestruturação dos padrões de acumulação do capitalismo internacional. (p. 42).
Visto desta maneira, a escola não só pode, como deve, desempenhar um papel fundamental na construção e no desenvolvimento de uma consciência crítica, com a defesa dos Direitos Humanos e com a afirmação da cidadania mais ampla. Portanto, a instituição escolar pode ser um canal para a formação de sujeitos conscientes e críticos em relação ao seu papel, assim como na afirmação do seu compromisso como agentes de uma transformação social.
Desta forma, a escola é uma instituição que deveria exercer o papel de fomentador da construção crítica, oferecendo subsidio para a construção de valores necessários às diversas dimensões da vida e fazendo frente aos desafios da vida social.
Neste sentido, ao construir diretrizes o plano estabeleceu objetivos que pretendem fortalecer um Estado de Direito, “a construção de uma sociedade mais justa, eqüitativa e democrática” (PNEDH, 2006, p. 18), através da promoção e disseminação de dados sobre direitos, que precisam ser publicados, e tendo a escola um projeto político-pedagógico, seria importante que estas diretrizes não ficassem só no plano do ideal, mas que se concretizassem no plano real da instituição escolar.
4. As representações sociais dos alunos sobre direitos na Escola Técnica Estadual República
Utilizando-nos das falas dos alunos, em um estudo que ocorreu durante o ano de 2006, na Escola Técnica República, localizada no campus de Quintino, envolvendo cerca de 58 alunos de séries e cursos diferentes do ensino médio profissionalizante, usando a observação no ambiente escolar e entrevistas semi-abertas, analisaremos se as diretrizes indicadas pela FAETEC foram apreendidas pelo corpo de educadores e qual o nível de cultura de direitos os alunos possuem.
Trabalhando com as representações dos alunos, pressupomos que a partir delas é possível identificar percepções e concepções dos sujeitos individuais. Na tentativa de captar se esta instituição de ensino está, ou não, possibilitando discussões que tragam a estes sujeitos, momentos de reflexão sobre sua condição de pessoas possuidoras de direitos e delinear ações que podem estar se efetivando na sociedade.
Frigotto ao discutir a educação como espaço de reprodução da vida, menciona que “a educação (e é a educação escolar que me refiro) mais como um espaço da infância e da juventude, e da vida adulta também, como direito, onde ali se produzem e se reproduzem conhecimentos, valores, símbolos, atitudes”. (2006, p. 20). Neste sentido, procuramos apreender através das falas dos alunos a suas formas de representar a vivência dentro da escola.
Nesta mesma linha Buttigieg menciona que Gramsci revela uma articulação entre educação e hegemonia, saindo do espaço escolar e ampliando o olhar para a sociedade como um todo, observando que “as relações educacionais constituem o próprio núcleo da hegemonia” (idem, p. 47), compreendendo que na visão de Gramsci, a sociedade burguesa, “se perpetua através de operações de hegemonia (...) através de atividade e iniciativas de uma ampla rede de organizações culturais, movimentos políticos e instituições educacionais que difundem sua concepção de mundo e seus valores capilarmente pela sociedade”. (Ibidem, p. 46). Mas, acrescenta que Gramsci “não compreende as relações como unidirecionais” (Ibidem, p. 46), assim a atividade hegemônica estaria ligada a uma atividade cultural ampla, que estaria além da instrução escolar. Comenta que o autor via a educação na escola, como um aprendizado a mais, servindo, assim, a operações fundamentais de hegemonia, sendo a relação pedagógica um outro tipo de relação, mais ampla que abarcaria não só a educação escolar, mas um todo mais completo de aprendizado, envolvendo todas as relações sociais, fossem elas nacionais ou internacionais.
(...) toda a sociedade no seu conjunto e em todo individuo em relação aos outros indivíduos , entre camadas intelectuais e não intelectuais... é necessário uma relação pedagógica que se verifica não apenas no interior de uma nação, entre as diversas forças que a compõem...entre conjunto de civilizações nacionais e continentais. (Ibidem, p. 47).
Este quadro define que a hegemonia dominante se constrói a partir da sociedade civil e de suas diversas instituições e do Estado, inclusive a escola, e sempre terá uma certa instabilidade, pois pressupõe a existência de forças contrárias que de alguma forma resistem a esta hegemonia, podendo, ou não, construir projetos alternativos.
A partir destas considerações, passamos a observar nas falas dos alunos, a força da reprodução ideológica dentro da escola, pois, quando perguntados sobre o que consideravam cidadania, o mais recorrente foi que seria a condição de ser portador de direitos e deveres para com uma sociedade, dos 58 entrevistados, 39 deles expressaram-se vinculando-a ao direito do voto, 13 não conseguiram responder, e cinco indicaram, como cidadania, a participação no centro acadêmico, somente um pensou na cidadania como participação política direta, através de associações. E quando perguntado o porquê de achar que cidadania estava, também, ligada a participação política da comunidade em associações, ele justificou informando que sua mãe participava da associação do bairro onde morava. Esta constatação fez-nos pensar o quanto poderia a escola contribuir para a participação política da comunidade, não só nas condições sobre o aprendizado dos alunos, mas em propostas mais abrangentes, na qual a escola poderia ser o espaço de encontro possível para as reuniões dos diversos tipos de associações que existem dentro de uma comunidade, sejam de bairro, de cooperativas, etc.
No bloco que se referia ao futuro profissional, muitos desejavam ter um maior acesso a diferentes formas de conhecimento, porém, se sentiam desestimulados, pois estavam em uma escola técnica que formava pessoas para o mercado de trabalho e não para uma continuidade dos estudos, o que foi inclusive citado por um aluno, como exemplo de comentário dentro de conversas em sala de aula. A nosso ver apesar da proposta institucional ser de formação técnica, esta não deveria excluir os anseios de alguns grupos de alunos, inclusive deveriam trabalhar com perspectivas que oferecer discussões sobre o futuro desejado.
Outro ponto apontado era as restrições a certos espaços institucionais, inquietações que segundo os alunos quebravam o sentido de coletividade, de pertencimento ao lugar, de que o bem público (no caso a escola) lhe pertencia, fazendo que os alunos se sentissem desencantados quanto ao cuidado com os bens públicos. Muitos alunos relataram o não poder transitar com liberdade pelos espaços dentro da escola, apesar de estarem em locais abertos, estes lugares eram vigiados pelos funcionários que não os deixavam passar, criando assim, uma animosidade dentro da instituição. Para eles a liberdade só existia quando o convívio era na parte externa da escola, espaço no qual podiam conversar, discutir, dialogar sem repressões constrangedoras por parte do corpo educacional.
5. Conclusão
Ao fazermos uma análise do trabalho, percebemos que, apesar do plano com as diretrizes para a construção do projeto político-pedagógico da FAETEC considerar que a escola como um locus privilegiado para o desenvolvimento da cidadania e de formação de uma consciência democrática, este não se concretiza, na medida que, os alunos revelaram pouco conhecimento sobre direitos, cidadania, aliados a desilusão com a possibilidade de mobilização social no futuro, incluindo nesta cesta de desilusões o não se sentir parte integrante do espaço físico que a escola possui, limitações construídas que criam um distanciamento do que se é de todos, mas que não se pode usufruir.
Entendemos que um projeto político-pedagógico deva ser um instrumento na construção de metas e objetivos a serem alcançados pela instituição, mas que contenha, também, a perspectiva de atender os sonhos de igualdade, liberdade e futuro que estão na subjetividade de cada aluno.
Portanto, a escola tem a possibilidade de se tornar um espaço de construção crítica a partir de um projeto político-pedagógico que não fique somente no plano formal, no sentido de que a mesma possibilite a construção de espaços que propiciam discussões, reflexões auxiliadoras a pensar a realidade e a inserção dos alunos de forma crítica no seu interior.
O olhar restrito do que é ser um cidadão, o desencanto com a possibilidade de olhar criticamente a sociedade, a não visão das suas possibilidades de participação social, fazem parte de um processo de reprodução de valores simbólicos necessários à manutenção da ordem social atualmente instaurada, quebrando as possibilidades de uma nova forma de sociedade, mais igual e justa.
REFERÊNCIAS
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